Justo a mim me coube ser eu
Toda vez que minha avó paterna me dizia, que o molde em que
fui feita fora quebrado quando nasci, eu achava que ela estava me elogiando.
Acreditava que somente eu era "única" no mundo. Aos poucos fui
percebendo meu engano. Primeiro, porque ao invés de me tornar diferente, ser
uma criatura única é o que me igualava a todos os seres humanos. Entendi que é
parte da nossa condição humana sermos indivíduos exclusivos. Dela ninguém
escapa. Em segundo lugar, porque essa exclusividade, ganha com meu nascimento,
não me foi dada assim de mão beijada. Nem veio pronta, nem tinha um manual. Ela
se parece com aquelas massinhas de modelar, que quando a gente ganha, ganha só
a massa, não a forma, e o resultado final é sempre o fruto de um longo processo
de faz e desfaz.
Cedo percebi que jamais teria sossego e muito trabalho.
Típico presente de grego, uma armadilha. Encontrei eco para o meu espanto nas
palavras da Mafalda, a famosa personagem de Quino, o cartunista argentino,
quando ela diz: "Justo a mim me coube ser eu!" Ser quem só a gente
mesmo pode ser, é quase uma desolação. Quem eu sou e deverei ser? Minha individualidade
é um mistério.
Quantas vezes eu não preferi ser outra! Se não, pelo menos
duvidei se não seria melhor ter nascido em outra família, em outra época, com
outra situação financeira, outra cara, outro corpo, outro temperamento... Ainda
mais, porque, aparentemente, sempre soube resolver a vida dos outros muito
melhor do que a minha própria.
Para ser sincera, quando penso que o meu "eu" está
em aberto, o que sinto mesmo é um grande alívio. Se eu tivesse nascido pronta,
não teria conserto. E se não houvesse remédio para os meus erros e uma chance
para os meus fracassos? E se eu não pudesse mudar de ponto de vista, de gosto,
de planos, de opinião? E se eu não tivesse escolhas, nem alternativas?
Mas também vejo um lado sombrio em ser um projeto em aberto,
o de nunca ter certeza, sobretudo de antemão, de ter tomado a atitude certa, de
ter feito a escolha mais apropriada – aquela em que não me traio. Quando
percebo que um gesto qualquer vai afetar o meu destino, sinto medo, angustia,
suo frio, tenho vertigens, adoeço. Aí, a tentação de pegar carona na escolha
dos outros, ou no estilo de vida deles é grande, mas minha alma grita que não
vai dar certo, e me lembra que o meu molde foi quebrado, que é exclusivo.
Levei muito tempo para entender que minha exclusividade não
está simplesmente em mim, ou na minha cor de olhos, nem nos meus talentos mais
especiais. Ela está sempre lançada adiante de mim como um desafio, como um
destino a que tenho que chegar e uma história a ser vivida. Minha exclusividade
– eu mesma – apenas virá, quando eu puder afirmar que a história que vim
realizando, só eu, e ninguém mais, a poderia ter vivido.
É a isso que a personagem Amparo, no filme de Almodóvar
"Tudo sobre minha mãe", se refere, quando afirma que ela é tanto mais
autêntica, quanto mais perto estiver daquilo que projetou para si mesma. Fala
com orgulho e alegria, revelando assim, que desvendou o mistério que envolve o
problema de ser quem somos: autenticar nossa biografia. Avalizá-la.
Onde estou, senão no rastro de história que venho deixando
atrás de mim, naquilo que vim fazendo e dizendo? Onde estou, senão nessa
biografia que realizo e atualizo a cada instante, por meio das minhas decisões
e do meu empenho?
Hoje não importa mais se sou diferente dos outros, mas se
faço alguma diferença neste mundo.
Texto: Dulce Critelli publicado
na coluna “Outras Ideias”, Folha Equilíbrio, “Folha de São Paulo, de 22 de
julho de 2004
Enviado por: Patriciana Gomes
Texto muito bem escrito e profundo. merece reflexão. Parabéns à autora e a quem o selecionou.
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