Salve-se quem puder? - Dom Alberto Taveira
Está inscrito na natureza humana o anseio pela felicidade, a
busca da plena realização de todas as suas potencialidades. Ainda bem! É
altamente consolador ter a clareza de que não fomos feitos para nivelar pelo
rodapé da existência nossos sonhos, mas buscar o que é melhor, mirar as coisas
do alto, acolher o chamado de Deus a ser perfeitos. Entra aqui um dado
importante, pois não se trata apenas de construção pessoal, mas resposta, a
modo de um diálogo iniciado desde toda a eternidade. Fomos pensados e amados
por alguém. Não somos obra do acaso, nem estamos perdidos, sem rumo.
Entretanto, a luta renhida do cotidiano pode levar as
pessoas a se engajarem numa competição, tantas vezes desigual, pelos melhores
lugares na sociedade, oportunidades de trabalho e reconhecimento, num
"salve-se quem puder" semelhante à correria que se segue a tragédias,
como incêndios ou revoltas populares. Cada um quer receber o seu naco de
proveito e, infelizmente, tantas vezes à custa do pescoço do outro a ser
pisado. Todas as diversas manifestações que pululam hoje pelo mundo e pelo
nosso país têm como pano de fundo o desejo profundo de realização e a busca do
espaço de liberdade, para o qual fomos feitos. Só que muitos entram de roldão
nas ondas de protestos, criando-se um estado de insatisfação em que se perde o
sentido do respeito às pessoas e os justos limites da liberdade de cada homem e
cada mulher. Também as situações pessoais e os dramas familiares nos deixam
estarrecidos, de modo a suscitar um "até quando?" que inquieta a
todos, pela multiplicação de fatos inusitados. E que dizer da absurda eliminação
da vida das pessoas e a violência que se espalha? Podemos até destruir
justamente o que mais nos atrai, o sonho de felicidade e dignidade!
E Deus vem ao encontro dos anseios humanos, antes, criou a
todos com uma sede de eternidade e de felicidade. Ele quer que todos se
realizem. Mas há uma interrogação cuja atualidade se revela perene, diante das
perspectivas que se abrem para a humanidade de cada tempo: "Jesus
atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo o caminho para
Jerusalém. Alguém lhe perguntou: 'Senhor, é verdade que são poucos os que se
salvam?' Ele respondeu: 'Esforçai-vos por entrar pela porta estreita. Pois eu
vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão' (Lc 13,22-14)". Ao
invés de oferecer respostas prontas e aparentemente fáceis de serem absorvidas,
Jesus envolve as pessoas numa verdadeira aventura de engajamento na estrada da
salvação e da liberdade. De fato, Deus quer o bem de todos e a vida em
abundância (Cf. Jo 10,10). Ninguém se sinta alijado de seu projeto! No entanto,
faz-se necessário, justamente pela liberdade com que as pessoas foram criadas,
arriscar-se pela porta estreita do amor ao próprio Deus e o próximo. Não fomos
feitos para ficar assentados, esperando a grande sorte na loteria da vida, ou
reduzindo a sonhos de consumo o sentido da existência. As soluções
aparentemente mágicas não são plenamente humanas. Humano é sair de si para amar
e servir! Humano é tecer relações novas entre pessoas e grupos, superar a
desconfiança, exercitar a criatividade, inventar soluções novas, acreditar nos
pequenos passos.
Daí nasce o convite e o compromisso cristão na construção de
um mundo melhor. Começa no alto, no plano de Deus a nosso respeito. "É do
amor de Deus por todos os homens que, desde sempre, a Igreja vai buscar a
obrigação e o vigor do seu ardor missionário: 'Porque o amor de Cristo nos
impele' (2 Cor 5, 14). Com efeito, 'Deus quer que todos os homens sejam salvos
e cheguem ao conhecimento da verdade' (1 Tm 2, 4). Deus quer a salvação de
todos, mediante o conhecimento da verdade. A salvação está na verdade. Os que
obedecem à moção do Espírito da verdade estão já no caminho da salvação. Mas a
Igreja, à qual a mesma verdade foi confiada, deve ir ao encontro dos que a
procuram para lha levar. É por acreditar no desígnio universal da salvação que
a Igreja deve ser missionária" (Catecismo da Igreja Católica, 851). O
anúncio da "salvação" proclama que a vida tem sentido e que é para a
felicidade que Deus nos fez. "Chamado à felicidade, mas ferido pelo
pecado, o homem tem necessidade da salvação de Deus. O auxílio divino lhe é
dado em Cristo, pela lei que o dirige e na graça que o ampara: 'Trabalhai com
temor e tremor na vossa salvação: porque é Deus que opera em vós o querer e o
agir, segundo os seus desígnios' (Fl 2, 12-13; Catecismo da Igreja Católica
1949).
Consequência é nosso olhar positivo ao mesmo tempo realista
a respeito da realidade. Fomos feitos para o bem e temos a semente plantada por
Deus em nossos corações, com todas as possibilidades de nos realizarmos. No
entanto, existe em nós o mistério da iniquidade, pelo que, olhando no espelho
da vida reconhecemos as rugas deixadas pelo pecado. Olhamos também para os
outros e os acolhemos, sabendo que neles existe esta desafiadora mistura de boa
intenção e pecado. Acreditamos que o amor de Deus é maior do que toda a maldade
existente, engajando-nos na luta pelo bem e pela verdade. Consequência é o
primeiro passo a ser dado. Cabe a cada um de nós começar, sem aguardar que os
outros venham ao nosso encontro. Consequência é a construção de novos
relacionamentos, certos da palavra de Jesus: "Nisto conhecerão todos que
sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35).
Para tanto, só a graça de Deus nos sustenta e, por, isso,
pedimos: "Ó Deus, que unis os corações dos vossos fiéis num só desejo, dai
ao vosso povo amar o que ordenais e esperar o que prometeis, para que, na
instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as
verdadeiras alegrias. Amém."
Texto: Dom Alberto Taveira Corrêa / Arcebispo de Belém
Fonte: CNBB
cnbb.org.br/site/articulistas/dom-alberto-taveira-correa/12669-salve-se-quem-puder
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